A arte de ocultar correntes: como a política aperfeiçoou o disfarce da opressão

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Desde os tempos mais remotos, a política tem se erguido como o campo privilegiado da disputa pelo comando das consciências, mais do que pela mera condução dos corpos. O enunciado — "A política se tornou a arte de impedir que as massas se apercebam da opressão que sofrem" — sintetiza com precisão a mutação sofisticada do poder: de brutal e ostensivo, como nas tiranias clássicas, para dissimulado e consensual, como nas democracias de fachada e nos regimes tecnocráticos contemporâneos. O poder, que outrora se exercia com a espada e o açoite, hoje se perpetua através da manipulação simbólica, da produção de narrativas e do controle sutil dos desejos e percepções. O século XX foi o grande laboratório dessa transformação. A escola de Frankfurt, sobretudo com Herbert Marcuse e a sua "sociedade unidimensional", já denunciava o surgimento de uma ordem política onde a opressão não mais se sustentava na coerção explícita, mas na fabricação de uma cultura que anestesia e neutra...

Dias Toffoli e a arte na narrativa jurídica


A política, em sua essência, é um terreno fértil para a construção de narrativas. Estas, quando habilmente tecidas, têm o poder de remodelar a percepção da realidade, influenciar opiniões e direcionar o curso dos eventos. A recente decisão do Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, em relação à Operação Lava Jato e a multa da JBS, serve como um exemplo clássico de como as narrativas são utilizadas nas arenas política e jurídica para moldar a realidade.

Toffoli, ao comparar os irmãos Batista, envolvidos na Operação Lava Jato, aos personagens literários Jean Valjean e Edmond Dantès, de Victor Hugo e Alexandre Dumas, respectivamente, emprega uma técnica narrativa poderosa. Essa comparação busca estabelecer uma conexão emocional com o público, evocando a injustiça e a redenção presente nas histórias desses personagens icônicos.

Por um lado, Valjean, condenado por roubar um pão, e Dantès, injustamente aprisionado, são figuras literárias que simbolizam a resistência contra a injustiça e a corrupção do sistema. Ao associar os irmãos Batista a essas figuras, Toffoli parece sugerir que eles também são vítimas de um sistema abusivo e desproporcional, uma manobra que visa provocar simpatia e questionamento acerca da legitimidade das ações da Lava Jato.

Este caso ilustra como a política e decisões jurídicas frequentemente se entrelaçam com a narrativa. Como observado pelo filósofo Michel Foucault, o poder muitas vezes se manifesta na capacidade de controlar o discurso. As histórias que contamos e as analogias que fazemos não são meramente entretenimento; elas moldam nosso entendimento do mundo e influenciam nossa percepção de justiça e moralidade.

A utilização de referências literárias em debates políticos e jurídico não é apenas uma estratégia retórica; é um reflexo de como os líderes políticos e jurídicos reconhecem o poder das histórias na formação da opinião pública. É uma forma de conferir legitimidade e profundidade a seus argumentos, apelando não só à razão, mas também às emoções do público.

No entanto, há um perigo inerente nessa prática. Ao transformar casos complexos de corrupção e política em narrativas simplistas de heroísmo e vitimização, corre-se o risco de distorcer a realidade. A simplificação excessiva de eventos complexos em analogias literárias pode levar a uma compreensão superficial dos problemas, prejudicando o debate público informado e crítico.

A Operação Lava Jato, por exemplo, é um fenômeno multifacetado, com implicações profundas para o sistema judiciário e político do Brasil. Reduzi-la a uma narrativa de heróis e vilões pode obscurecer as nuances importantes e as questões legais e éticas envolvidas.

É fundamental, portanto, que os consumidores de informação política e jurídica sejam críticos e questionem as narrativas apresentadas. Como afirmado por Max Weber, a política é uma forte luta pelo poder e pela influência. E nessa luta, as narrativas são armas poderosas. Cabe ao público discernir e analisar criticamente as histórias contadas pelos políticos, separando a ficção da realidade e entendendo as motivações por trás dessas narrativas.

Assim, a reflexão de Toffoli sobre a Lava Jato é um lembrete valioso: na política, como na literatura, as histórias que contamos têm o poder não apenas de refletir a realidade, mas de moldá-la. É essencial, portanto, manter um olhar crítico sobre as narrativas políticas, compreendendo-as como parte integrante da arte e da estratégia no jogo do poder.


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