A arte de ocultar correntes: como a política aperfeiçoou o disfarce da opressão

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Desde os tempos mais remotos, a política tem se erguido como o campo privilegiado da disputa pelo comando das consciências, mais do que pela mera condução dos corpos. O enunciado — "A política se tornou a arte de impedir que as massas se apercebam da opressão que sofrem" — sintetiza com precisão a mutação sofisticada do poder: de brutal e ostensivo, como nas tiranias clássicas, para dissimulado e consensual, como nas democracias de fachada e nos regimes tecnocráticos contemporâneos. O poder, que outrora se exercia com a espada e o açoite, hoje se perpetua através da manipulação simbólica, da produção de narrativas e do controle sutil dos desejos e percepções. O século XX foi o grande laboratório dessa transformação. A escola de Frankfurt, sobretudo com Herbert Marcuse e a sua "sociedade unidimensional", já denunciava o surgimento de uma ordem política onde a opressão não mais se sustentava na coerção explícita, mas na fabricação de uma cultura que anestesia e neutra...

A religião como ferramenta de controle e poder político: uma aliança milenar


Desde os primórdios das civilizações, religião e política andam lado a lado como duas faces de uma mesma moeda. Em diferentes contextos históricos e culturas, líderes políticos perceberam que a fé poderia ser uma poderosa aliada na construção e manutenção do poder. De faraós egípcios a presidentes contemporâneos, a aliança entre o sagrado e o profano permanece uma constante na história da humanidade, revelando a profunda interdependência entre crença religiosa e controle político.

A religião, por sua própria natureza, exerce uma força singular sobre as pessoas. Ela oferece respostas para as incertezas existenciais, sentido para a vida e normas morais que guiam comportamentos. Assim, ao se associar à religião, os líderes políticos ganham um meio eficaz de legitimação, utilizando o respeito e a devoção religiosa para justificar suas ações e decisões. Na Antiguidade, por exemplo, faraós, imperadores e reis frequentemente eram vistos como figuras divinas ou semidivinas, detentores de um poder que era, supostamente, concedido pelos deuses. Esse argumento garantia obediência e, muitas vezes, impedia questionamentos sobre as ações do governante, já que se opor a ele seria um ato de sacrilégio.

Um exemplo claro é o conceito de “Direito Divino dos Reis” que predominou na Europa durante a Idade Média e o início da Idade Moderna. Os monarcas alegavam que seu poder era uma concessão direta de Deus, o que significava que qualquer tentativa de contestar sua autoridade era, na prática, um desafio à própria vontade divina. Isso não apenas consolidava a posição dos reis, mas também servia como um poderoso mecanismo para reprimir revoltas e movimentos que buscavam alterar o status quo. Filósofos como Thomas Hobbes argumentavam que essa relação era uma forma de garantir a ordem e evitar a anarquia, já que a autoridade régia era apresentada como um pilar fundamental para a estabilidade social.

No entanto, o uso político da religião não se limita ao passado. Em tempos modernos, muitos líderes ainda recorrem à fé para manter a coesão social e reforçar seu domínio. Durante o século XX, por exemplo, diversos governos autoritários na América Latina, como no Brasil durante a ditadura militar, buscavam a benção e o apoio das igrejas locais para legitimar seus regimes. A aliança com setores religiosos, especialmente os mais conservadores, ajudava a construir uma imagem de moralidade e proteção contra as "ameaças comunistas", como era frequentemente pregado. A religião, nesse sentido, tornava-se uma arma política, capaz de mobilizar sentimentos de pertencimento e medo.

Outro exemplo contemporâneo é a influência do cristianismo evangélico na política dos Estados Unidos. Líderes conservadores, como o ex-presidente Donald Trump, usaram ativamente o apoio de grupos religiosos para mobilizar a base eleitoral. Nesse caso, a estratégia envolvia unir valores morais defendidos pelas igrejas a pautas políticas, como a oposição ao aborto e a defesa do casamento tradicional, criando uma narrativa de “guerra cultural” que polariza a sociedade e gera um senso de urgência moral entre os eleitores religiosos. Ao estabelecer essa relação de dependência mútua, onde políticos prometem defender a fé em troca de apoio, as igrejas ganham influência no processo político e os líderes obtêm um meio eficaz de manter e ampliar sua base de poder.

No Oriente Médio, o uso da religião como ferramenta política também é evidente, mas com uma dinâmica diferente. Muitos governos se apresentam como defensores do Islã, utilizando a fé para consolidar suas estruturas de poder e justificar a repressão de adversários. A República Islâmica do Irã é um exemplo claro: o regime combina elementos do governo teocrático com uma estrutura política, criando um sistema onde as figuras religiosas possuem autoridade suprema. Assim, qualquer oposição ao governo é facilmente apresentada como um ato contra o Islã, o que desmoraliza e enfraquece os movimentos dissidentes. Filósofos como Michel Foucault argumentaram que o poder, em situações assim, se manifesta não apenas em estruturas políticas, mas em todos os aspectos da vida, incluindo a religião, que se torna um instrumento de controle social e político.

Esse uso estratégico da religião, contudo, nem sempre é uma via de mão única. Em muitos casos, líderes religiosos também buscam o apoio do Estado para garantir sua própria relevância e influência. Em sociedades onde a fé é uma parte intrínseca da identidade nacional, como em Israel, Índia ou Rússia, figuras religiosas desempenham papéis centrais na definição das políticas e até na formação de alianças militares e econômicas. Na Índia, por exemplo, o crescimento do nacionalismo hindu está fortemente associado ao partido governista BJP e ao primeiro-ministro Narendra Modi, que tem usado a retórica religiosa para fortalecer seu domínio e justificar políticas que marginalizam minorias religiosas, como os muçulmanos.

O sociólogo Max Weber já argumentava que a religião, enquanto estrutura de poder, é utilizada para a formação do que ele chamou de “dominação legítima”, onde o controle político se justifica não pela força bruta, mas pela aceitação cultural e moral das populações. Assim, líderes se aproveitam da conexão emocional e simbólica que a religião oferece para criar um vínculo de lealdade que, muitas vezes, é mais eficaz do que a coerção direta.

A aliança entre religião e política é uma das mais duradouras e estratégicas da história da humanidade. Embora os contextos e as religiões mudem, a lógica subjacente permanece: a religião fornece um poderoso recurso de mobilização, legitimidade e controle, que os líderes políticos utilizam para consolidar e expandir seu poder. O desafio para as sociedades contemporâneas é encontrar um equilíbrio que permita a expressão da fé sem que ela seja instrumentalizada como uma ferramenta de manipulação política.

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