A arte de ocultar correntes: como a política aperfeiçoou o disfarce da opressão

A tecnocracia, que valoriza a ciência, os dados e o conhecimento especializado como base para as decisões políticas, tem ganhado força principalmente em contextos onde a complexidade das políticas públicas exige expertise especializada. Crises como a pandemia de COVID-19 ilustraram isso de forma clara. Nesse período, figuras como cientistas, epidemiologistas e economistas ganharam voz e influência, muitas vezes sobrepujando líderes políticos convencionais que, sem o suporte técnico adequado, não tinham capacidade de enfrentamento eficaz da crise. Os tecnocratas, portanto, apresentam uma solução racional aos problemas da modernidade, e seu poder tende a crescer em questões que exigem um alto nível de conhecimento técnico, como as mudanças climáticas e a regulação de tecnologias avançadas, incluindo inteligência artificial.
Já o populismo, que é movido pelo apelo popular e pela habilidade de líderes carismáticos em criar uma identificação direta com o povo, surge como resposta a essa tecnificação da política, que, segundo muitos, desumaniza as relações entre o governo e a população. O populismo floresce em contextos de descontentamento social, onde grandes segmentos da população se sentem excluídos das decisões políticas e ignorados por elites intelectuais e econômicas. Ao adotar uma postura de confronto contra essas elites, líderes populistas capturam a indignação popular, oferecendo respostas simples para problemas complexos e muitas vezes apelando para o "senso comum". Essa retórica, como bem explica o filósofo político Ernesto Laclau, cria uma polarização clara: o “nós” versus “eles”, onde o “nós” representa o povo e o “eles” representa as elites distantes e desconectadas.
A visão de Laclau sobre o populismo como forma legítima de articulação política coloca em xeque a hegemonia dos tecnocratas. Afinal, a democracia, segundo ele, se baseia no princípio da representação da vontade popular e não na competência técnica dos governantes. Nesse sentido, o populismo recupera a ideia de que a política deve ser guiada pela voz do povo, mesmo que suas demandas possam parecer irracionais ou ideologicamente conflitantes. O filósofo britânico John Stuart Mill já alertava, porém, que o governo pela maioria, sem o equilíbrio de uma classe política informada e técnica, poderia descambar para a “tirania da maioria”, onde decisões impulsivas e de curto prazo ganhariam precedência sobre o bem-estar a longo prazo.
Entre as vantagens e os desafios de cada modelo, a tecnocracia oferece a promessa de um governo eficiente e focado em resultados. Mas essa abordagem frequentemente esbarra em um problema central: a falta de conexão emocional e simbólica com os eleitores. Sociólogos como Max Weber já haviam identificado esse fenômeno, sugerindo que a “burocracia” – forma organizada de poder técnico – é impessoal e, assim, tende a alienar aqueles que dela dependem. Para Weber, a autoridade carismática, típica do populismo, teria o poder de restaurar essa ligação emocional entre líder e liderados, oferecendo uma alternativa ao racionalismo frio dos tecnocratas. Mas, ao mesmo tempo, Weber também advertia para o perigo do carisma descontrolado, que pode rapidamente degenerar em culto à personalidade e autoritarismo.
É interessante observar como, em diferentes partes do mundo, esses dois modelos coexistem e se entrelaçam, com líderes que tentam adotar elementos de ambos para alcançar uma governança híbrida. Emmanuel Macron, na França, por exemplo, é muitas vezes visto como um tecnocrata moderno, com formação e trajetória no setor financeiro e administrativo. No entanto, ele também incorporou elementos de retórica populista em certos momentos de sua trajetória, tentando, assim, apelar tanto para a razão quanto para a emoção dos eleitores. Esse tipo de mistura é um reflexo da necessidade dos líderes contemporâneos de equilibrar eficiência técnica com a legitimidade popular.
No final das contas, o embate entre tecnocracia e populismo pode ser visto como uma manifestação das tensões inerentes à democracia contemporânea. As demandas por eficácia e inovação convivem, muitas vezes de forma turbulenta, com a necessidade de representatividade e conexão com o eleitorado. Esta dialética entre expertise e carisma talvez seja inevitável no cenário político atual, onde tanto os problemas quanto as aspirações dos cidadãos são diversos e complexos. As sociedades democráticas continuam a lutar para definir até que ponto o conhecimento técnico deve guiar as políticas públicas, sem sacrificar a essência do princípio democrático: a participação e a vontade popular.
Diante dessa batalha pelo controle do futuro, o desafio que resta aos líderes políticos é aprender a navegar entre os extremos e construir um modelo de governança que contemple tanto a eficiência quanto a representatividade. O equilíbrio entre tecnocracia e populismo pode ser a chave para um modelo político mais eficaz, que trate as demandas do presente com a expertise necessária e, ao mesmo tempo, mantenha o compromisso com o povo e suas aspirações. Este é, afinal, o desafio da democracia em um mundo cada vez mais complexo e interconectado.
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