A arte de ocultar correntes: como a política aperfeiçoou o disfarce da opressão

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Desde os tempos mais remotos, a política tem se erguido como o campo privilegiado da disputa pelo comando das consciências, mais do que pela mera condução dos corpos. O enunciado — "A política se tornou a arte de impedir que as massas se apercebam da opressão que sofrem" — sintetiza com precisão a mutação sofisticada do poder: de brutal e ostensivo, como nas tiranias clássicas, para dissimulado e consensual, como nas democracias de fachada e nos regimes tecnocráticos contemporâneos. O poder, que outrora se exercia com a espada e o açoite, hoje se perpetua através da manipulação simbólica, da produção de narrativas e do controle sutil dos desejos e percepções. O século XX foi o grande laboratório dessa transformação. A escola de Frankfurt, sobretudo com Herbert Marcuse e a sua "sociedade unidimensional", já denunciava o surgimento de uma ordem política onde a opressão não mais se sustentava na coerção explícita, mas na fabricação de uma cultura que anestesia e neutra...

Tecnocracia vs. Populismo: a batalha pelo controle do futuro político


A política moderna parece estar dividida entre dois polos distintos: de um lado, o avanço dos tecnocratas, aqueles que defendem uma governança baseada no conhecimento técnico e na expertise; de outro, o populismo, caracterizado por líderes que, com forte carisma, mobilizam grandes parcelas da população em torno de demandas emocionais e, muitas vezes, simplistas. Esses modelos de liderança competem ferozmente pela preferência de eleitores que, frente à crescente complexidade dos desafios globais, buscam soluções eficazes e, ao mesmo tempo, uma conexão autêntica com seus governantes. Mas, será que a tecnocracia e o populismo são irreconciliáveis? Ou estamos diante de uma convivência inevitável e, talvez, complementar?

A tecnocracia, que valoriza a ciência, os dados e o conhecimento especializado como base para as decisões políticas, tem ganhado força principalmente em contextos onde a complexidade das políticas públicas exige expertise especializada. Crises como a pandemia de COVID-19 ilustraram isso de forma clara. Nesse período, figuras como cientistas, epidemiologistas e economistas ganharam voz e influência, muitas vezes sobrepujando líderes políticos convencionais que, sem o suporte técnico adequado, não tinham capacidade de enfrentamento eficaz da crise. Os tecnocratas, portanto, apresentam uma solução racional aos problemas da modernidade, e seu poder tende a crescer em questões que exigem um alto nível de conhecimento técnico, como as mudanças climáticas e a regulação de tecnologias avançadas, incluindo inteligência artificial.

Já o populismo, que é movido pelo apelo popular e pela habilidade de líderes carismáticos em criar uma identificação direta com o povo, surge como resposta a essa tecnificação da política, que, segundo muitos, desumaniza as relações entre o governo e a população. O populismo floresce em contextos de descontentamento social, onde grandes segmentos da população se sentem excluídos das decisões políticas e ignorados por elites intelectuais e econômicas. Ao adotar uma postura de confronto contra essas elites, líderes populistas capturam a indignação popular, oferecendo respostas simples para problemas complexos e muitas vezes apelando para o "senso comum". Essa retórica, como bem explica o filósofo político Ernesto Laclau, cria uma polarização clara: o “nós” versus “eles”, onde o “nós” representa o povo e o “eles” representa as elites distantes e desconectadas.

A visão de Laclau sobre o populismo como forma legítima de articulação política coloca em xeque a hegemonia dos tecnocratas. Afinal, a democracia, segundo ele, se baseia no princípio da representação da vontade popular e não na competência técnica dos governantes. Nesse sentido, o populismo recupera a ideia de que a política deve ser guiada pela voz do povo, mesmo que suas demandas possam parecer irracionais ou ideologicamente conflitantes. O filósofo britânico John Stuart Mill já alertava, porém, que o governo pela maioria, sem o equilíbrio de uma classe política informada e técnica, poderia descambar para a “tirania da maioria”, onde decisões impulsivas e de curto prazo ganhariam precedência sobre o bem-estar a longo prazo.

Entre as vantagens e os desafios de cada modelo, a tecnocracia oferece a promessa de um governo eficiente e focado em resultados. Mas essa abordagem frequentemente esbarra em um problema central: a falta de conexão emocional e simbólica com os eleitores. Sociólogos como Max Weber já haviam identificado esse fenômeno, sugerindo que a “burocracia” – forma organizada de poder técnico – é impessoal e, assim, tende a alienar aqueles que dela dependem. Para Weber, a autoridade carismática, típica do populismo, teria o poder de restaurar essa ligação emocional entre líder e liderados, oferecendo uma alternativa ao racionalismo frio dos tecnocratas. Mas, ao mesmo tempo, Weber também advertia para o perigo do carisma descontrolado, que pode rapidamente degenerar em culto à personalidade e autoritarismo.

É interessante observar como, em diferentes partes do mundo, esses dois modelos coexistem e se entrelaçam, com líderes que tentam adotar elementos de ambos para alcançar uma governança híbrida. Emmanuel Macron, na França, por exemplo, é muitas vezes visto como um tecnocrata moderno, com formação e trajetória no setor financeiro e administrativo. No entanto, ele também incorporou elementos de retórica populista em certos momentos de sua trajetória, tentando, assim, apelar tanto para a razão quanto para a emoção dos eleitores. Esse tipo de mistura é um reflexo da necessidade dos líderes contemporâneos de equilibrar eficiência técnica com a legitimidade popular.

No final das contas, o embate entre tecnocracia e populismo pode ser visto como uma manifestação das tensões inerentes à democracia contemporânea. As demandas por eficácia e inovação convivem, muitas vezes de forma turbulenta, com a necessidade de representatividade e conexão com o eleitorado. Esta dialética entre expertise e carisma talvez seja inevitável no cenário político atual, onde tanto os problemas quanto as aspirações dos cidadãos são diversos e complexos. As sociedades democráticas continuam a lutar para definir até que ponto o conhecimento técnico deve guiar as políticas públicas, sem sacrificar a essência do princípio democrático: a participação e a vontade popular.

Diante dessa batalha pelo controle do futuro, o desafio que resta aos líderes políticos é aprender a navegar entre os extremos e construir um modelo de governança que contemple tanto a eficiência quanto a representatividade. O equilíbrio entre tecnocracia e populismo pode ser a chave para um modelo político mais eficaz, que trate as demandas do presente com a expertise necessária e, ao mesmo tempo, mantenha o compromisso com o povo e suas aspirações. Este é, afinal, o desafio da democracia em um mundo cada vez mais complexo e interconectado.

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