A arte de ocultar correntes: como a política aperfeiçoou o disfarce da opressão

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Desde os tempos mais remotos, a política tem se erguido como o campo privilegiado da disputa pelo comando das consciências, mais do que pela mera condução dos corpos. O enunciado — "A política se tornou a arte de impedir que as massas se apercebam da opressão que sofrem" — sintetiza com precisão a mutação sofisticada do poder: de brutal e ostensivo, como nas tiranias clássicas, para dissimulado e consensual, como nas democracias de fachada e nos regimes tecnocráticos contemporâneos. O poder, que outrora se exercia com a espada e o açoite, hoje se perpetua através da manipulação simbólica, da produção de narrativas e do controle sutil dos desejos e percepções. O século XX foi o grande laboratório dessa transformação. A escola de Frankfurt, sobretudo com Herbert Marcuse e a sua "sociedade unidimensional", já denunciava o surgimento de uma ordem política onde a opressão não mais se sustentava na coerção explícita, mas na fabricação de uma cultura que anestesia e neutra...

O mundo só perdoa aqueles que o deixam confortável em sua própria podridão


A história é implacável com aqueles que desafiam o status quo. Rebeldes, revolucionários e pensadores que ousaram expor a hipocrisia do poder foram, na maioria das vezes, marginalizados, perseguidos ou eliminados. O mundo não perdoa quem o força a encarar sua própria podridão; ao contrário, perdoa apenas aqueles que o deixam confortável nela. A sociedade recompensa a conveniência, não a verdade.

Maquiavel, em O Príncipe, já alertava que um governante que busca ser moralmente correto em um mundo corrupto acabará destruído. O poder não se sustenta na bondade, mas na manutenção da ordem e no controle da narrativa. Aqueles que tentam mudar essa narrativa, expondo contradições e injustiças, são frequentemente descartados como ameaças. Foi o caso de Sócrates, condenado à morte por desafiar a moralidade ateniense, e de Martin Luther King Jr., assassinado por confrontar a estrutura racista dos Estados Unidos. Ambos não foram perdoados porque exigiam mudança – e mudança causa desconforto.

Por outro lado, há inúmeros exemplos de figuras históricas que, mesmo envolvidas em corrupção e abusos, foram “perdoadas” pelo tempo porque serviam a interesses estabelecidos. Ditadores e governantes autoritários frequentemente reabilitam suas imagens quando deixam de ser ameaçadores para a elite dominante. Pinochet morreu sem ser julgado, muitos ex-nazistas foram absorvidos pela política e economia da Alemanha pós-guerra, e figuras da ditadura brasileira conseguiram transitar para a democracia sem punição real. O perdão, nesses casos, não foi um ato de justiça, mas de conveniência.

Nietzsche criticava a moral tradicional como uma construção dos poderosos para manter seu domínio. Quem desafia essa moralidade muitas vezes é pintado como imoral ou subversivo, quando, na verdade, apenas denuncia a podridão já existente. Na política, isso se traduz na criminalização dos opositores enquanto aliados corruptos são protegidos. A seletividade do perdão não é uma falha do sistema, mas um de seus mecanismos fundamentais de autopreservação.

O mundo não perdoa aqueles que o obrigam a olhar para suas próprias falhas, pois isso exige esforço, mudança e desconstrução de privilégios. No entanto, aqueles que mantêm a sujeira sob o tapete, que jogam o jogo do poder sem questionar suas regras, esses sim, são esquecidos, absolvidos e, em alguns casos, até glorificados. O perdão, em política e na sociedade, é sempre um ato de poder, nunca de justiça.

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