A arte de ocultar correntes: como a política aperfeiçoou o disfarce da opressão

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Desde os tempos mais remotos, a política tem se erguido como o campo privilegiado da disputa pelo comando das consciências, mais do que pela mera condução dos corpos. O enunciado — "A política se tornou a arte de impedir que as massas se apercebam da opressão que sofrem" — sintetiza com precisão a mutação sofisticada do poder: de brutal e ostensivo, como nas tiranias clássicas, para dissimulado e consensual, como nas democracias de fachada e nos regimes tecnocráticos contemporâneos. O poder, que outrora se exercia com a espada e o açoite, hoje se perpetua através da manipulação simbólica, da produção de narrativas e do controle sutil dos desejos e percepções. O século XX foi o grande laboratório dessa transformação. A escola de Frankfurt, sobretudo com Herbert Marcuse e a sua "sociedade unidimensional", já denunciava o surgimento de uma ordem política onde a opressão não mais se sustentava na coerção explícita, mas na fabricação de uma cultura que anestesia e neutra...

Ser natural é a mais difícil das poses: a arte da autenticidade na política


Na política, poucos elogios são tão valiosos quanto ser considerado "autêntico". O eleitor tende a desconfiar de discursos excessivamente ensaiados e gestos artificiais, preferindo líderes que pareçam falar "do coração". No entanto, como dizia Oscar Wilde, "ser natural é a mais difícil das poses"—e na política, essa verdade se torna ainda mais evidente. A autenticidade, muitas vezes, não passa de uma performance bem-calculada.

A história está repleta de políticos que dominaram essa arte. Franklin D. Roosevelt, por exemplo, transmitia a imagem de um líder acessível e seguro, conversando diretamente com os americanos por meio de seus famosos "Fireside Chats" no rádio. Sua fala tranquila e pessoal fazia parecer que ele estava apenas tendo uma conversa informal com cada cidadão, mas tudo era cuidadosamente roteirizado para criar essa impressão.

No Brasil, um dos maiores exemplos dessa estratégia é Luiz Inácio Lula da Silva. Seu jeito coloquial, seu vocabulário simples e suas metáforas cotidianas fazem com que ele pareça um líder genuíno, alguém que fala "a língua do povo". No entanto, essa forma de comunicação é refinada ao longo de décadas, sempre adaptada às mudanças do cenário político. Do outro lado do espectro, Jair Bolsonaro apostou em uma autenticidade mais agressiva e espontânea, mas que, ironicamente, também era parte de uma persona política construída. Seus rompantes e declarações polêmicas, embora muitas vezes parecessem improvisadas, serviam a um propósito: reforçar sua imagem de outsider e antissistema.

O filósofo francês Pierre Bourdieu oferece um conceito útil para entender essa dinâmica: o "habitus". Ele argumenta que comportamentos que parecem naturais são, na verdade, frutos de um longo processo de aprendizado e internalização de normas sociais. Políticos bem-sucedidos treinam para parecer naturais. Seus gestos, suas pausas no discurso, seu tom de voz—tudo é ensaiado até que soe espontâneo.

Até mesmo líderes que rejeitam o "teatro da política" acabam encenando. Um exemplo clássico é José Mujica, ex-presidente do Uruguai, que se destacou por sua vida simples e seu discurso contra os privilégios do poder. Mas sua escolha de continuar morando em uma chácara modesta, dirigir um Fusca e doar grande parte de seu salário também eram decisões simbólicas que reforçavam sua imagem de líder diferente. Isso não significa que ele era falso, mas que sua autenticidade também era, em alguma medida, uma construção política.

O paradoxo é que, no jogo político, a busca pela naturalidade é uma exigência inescapável. O eleitor quer um líder que pareça verdadeiro, mas não tolera deslizes que revelem sua humanidade de maneira negativa. Um político que ensaia demais pode parecer frio e calculista; um que improvisa demais corre o risco de cometer erros fatais. O equilíbrio entre preparação e espontaneidade é, portanto, uma das habilidades mais valiosas na luta pelo poder.

No fim das contas, a política não é apenas sobre ideias e propostas, mas sobre narrativa e imagem. A autenticidade, nessa arena, raramente é um estado puro—é uma estratégia. Afinal, como Wilde bem percebeu, parecer natural é, muitas vezes, a mais difícil das poses.

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