A arte de ocultar correntes: como a política aperfeiçoou o disfarce da opressão

Mas o que, afinal, significa agir com base na ética da convicção? E por que Weber, ao mesmo tempo em que a reconhece, também a questiona como fundamento exclusivo da ação política?
Proferida em janeiro de 1919, logo após a Primeira Guerra Mundial e em meio à instabilidade da recém-proclamada República de Weimar, a conferência de Weber não é apenas uma reflexão teórica, mas uma intervenção viva e urgente no debate político da Alemanha. Com o país mergulhado no caos e na busca por novos caminhos, Weber dirige-se aos jovens universitários — os futuros líderes — com a intenção de fazê-los refletir sobre o tipo de alma necessário para suportar o peso da política.
É nesse contexto que ele apresenta sua clássica distinção entre dois tipos de ética.
A ética da convicção é, essencialmente, uma ética de princípios. O agente moral orienta suas ações por valores considerados absolutos — sejam eles religiosos, ideológicos, filosóficos ou morais —, sem se preocupar com as consequências práticas de suas escolhas. Para esse tipo de postura, o importante é a pureza da intenção e a fidelidade ao ideal.
Weber ilustra essa ética com a postura dos profetas, mártires e idealistas que agem segundo um imperativo categórico. Mesmo que o mundo desmorone em torno deles, mesmo que sua ação gere efeitos desastrosos, eles permanecem firmes em seus princípios, podendo dizer com serenidade: “A responsabilidade pelas consequências não é minha; fiz o que era certo.”
Essa ética, ao se concentrar exclusivamente na coerência interna do agir, expressa um tipo de grandeza moral admirável. Mas ela também pode degenerar, adverte Weber, num perigoso descompromisso com a realidade.
Weber era profundamente realista quanto à natureza da política. Para ele, o Estado moderno é, em última instância, uma entidade que detém o monopólio legítimo da força. Portanto, qualquer atuação política pressupõe lidar com o poder, com os meios da coerção e com as imperfeições do mundo real.
Agir exclusivamente com base em princípios pode ser admirável na vida pessoal, mas é insuficiente — e até irresponsável — na esfera política, onde cada decisão afeta milhões de vidas, e onde os dilemas são reais e muitas vezes trágicos.
A política exige escolhas duras: firmar alianças com adversários, recuar taticamente, ceder em pontos secundários para conquistar objetivos estratégicos. Nesses contextos, a fidelidade cega aos princípios pode ser tão destrutiva quanto o cinismo total.
É por isso que Weber propõe um contraponto à ética da convicção: a ética da responsabilidade. Aqui, o agente não apenas considera os princípios que orientam sua ação, mas também pondera as consequências concretas que dela advêm. Trata-se de uma ética madura, atenta aos efeitos reais e disposta a assumir o peso moral das escolhas feitas.
Diferente do idealista que diz “os fins não justificam os meios”, o político responsável se vê obrigado a considerar que os meios, às vezes imperfeitos, são o único caminho possível para alcançar certos fins legítimos. Isso não significa, para Weber, aceitar a corrupção moral ou o vale-tudo, mas reconhecer que a pureza absoluta muitas vezes é um luxo que o real não comporta.
O verdadeiro político, segundo ele, é aquele que une o fogo da convicção com o olhar frio da responsabilidade. Que acredita em algo, mas que sabe calcular. Que tem princípios, mas também senso de proporção.
Quando a ética da convicção se torna exclusiva e não dialoga com a realidade, ela se aproxima do fanatismo. Weber afirma que o homem que age apenas com base na convicção corre o risco de transformar sua ação em destruição.
Isso é visível em contextos de radicalização ideológica: líderes ou movimentos que, em nome de um ideal, ignoram os efeitos de suas ações, promovem rupturas violentas, alimentam guerras, destroem instituições. Agem “em nome do bem”, mas produzem o mal. O inferno, dizia Weber, pode estar pavimentado de boas intenções — e ele sabia o que dizia.
Weber não propõe a exclusão de uma ética pela outra. Sua proposta é mais sutil e, por isso, mais exigente. Ele afirma que o político vocacionado é aquele que vive nessa tensão criativa entre princípios e realismo, entre fé e prudência, entre idealismo e cálculo.
Esse equilíbrio é difícil — por vezes insuportável. Mas é essa capacidade de “enfrentar o fracasso com firmeza”, de agir mesmo sem garantias de sucesso, que define o homem político verdadeiro. Em suas palavras:
“A convicção profunda de que, apesar de tudo, a vida tem sentido — e que vale a pena lutar por esse sentido — é o que torna um homem apto à política.”
A distinção entre ética da convicção e da responsabilidade continua essencial no debate público contemporâneo.
1. Na política democrática
Governantes que se recusam a negociar por “princípio” frequentemente paralisam o sistema político. Por outro lado, aqueles que agem apenas conforme os ventos das pesquisas ou das conveniências imediatas, sem qualquer valor norteador, mergulham a política no cinismo.
2. No Judiciário
Juízes que aplicam a lei com rigor absoluto, desconsiderando os contextos sociais, podem produzir injustiças em nome da legalidade. Outros, ao relativizar tudo, podem comprometer a previsibilidade do Direito.
3. Na vida cotidiana
Pais, educadores, líderes religiosos ou empresariais enfrentam dilemas similares. Devem manter seus princípios, mas também adaptar-se à complexidade das situações reais — caso contrário, tornam-se intransigentes ou omissos.
4. Na gestão pública
Aqueles que assumem cargos no serviço público precisam, como diria Weber, ter “nervos fortes”. Agir com responsabilidade é mais do que seguir o manual: é prever impactos, assumir erros, corrigir rumos — e não se esconder atrás de boas intenções.
Weber encerra sua conferência com uma das mais belas passagens da história do pensamento político. Ele diz que a política é o campo do possível, do esforço contínuo, da luta contra a banalidade do mal e da irresponsabilidade cega. E conclui com esta advertência memorável:
“A política é feita com a cabeça, e não com as emoções. E ainda assim, sem paixão, não se sustenta. Paixão no sentido de entrega à causa — mas com distanciamento e senso de proporção. O político precisa de paixão e de juízo. E da capacidade de manter a alma firme diante de um mundo interiormente dilacerado.”
A ética da convicção, por si só, é nobre — mas incompleta. A ética da responsabilidade, sozinha, pode ser eficiente — mas fria. Weber nos convida a reconhecer o valor de ambas, e sobretudo, a coragem que exige viver em sua tensão permanente.
O mundo não precisa apenas de idealistas que sonham com um paraíso abstrato, nem de cínicos que manipulam tudo em nome do pragmatismo. Precisa de líderes — e cidadãos — que tenham firmeza de princípios, mas também maturidade para agir diante da imperfeição do real.
A ética da convicção nos ensina o que é certo. A ética da responsabilidade nos lembra que, às vezes, fazer o certo exige sacrifícios e escolhas difíceis. E é nesse encontro, sempre incômodo, que a política verdadeira se faz.
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