A arte de ocultar correntes: como a política aperfeiçoou o disfarce da opressão

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Desde os tempos mais remotos, a política tem se erguido como o campo privilegiado da disputa pelo comando das consciências, mais do que pela mera condução dos corpos. O enunciado — "A política se tornou a arte de impedir que as massas se apercebam da opressão que sofrem" — sintetiza com precisão a mutação sofisticada do poder: de brutal e ostensivo, como nas tiranias clássicas, para dissimulado e consensual, como nas democracias de fachada e nos regimes tecnocráticos contemporâneos. O poder, que outrora se exercia com a espada e o açoite, hoje se perpetua através da manipulação simbólica, da produção de narrativas e do controle sutil dos desejos e percepções. O século XX foi o grande laboratório dessa transformação. A escola de Frankfurt, sobretudo com Herbert Marcuse e a sua "sociedade unidimensional", já denunciava o surgimento de uma ordem política onde a opressão não mais se sustentava na coerção explícita, mas na fabricação de uma cultura que anestesia e neutra...

A tolerância do poder e o limite da palavra


O poder, em sua essência, não é um ente moral ou imoral — ele é, sobretudo, instintivo. Seu primeiro mandamento é a preservação; seu segundo, o domínio. A frase “O poder é tolerante, até que alguém tente derrubá-lo com palavras” revela uma das verdades mais delicadas da governança: o poder suporta a crítica, o confronto e até mesmo o erro — até o instante em que identifica, nas palavras de um opositor, o germe da insubordinação que ameaça sua estabilidade. A linguagem, quando articulada com intenção estratégica, é tão perigosa quanto um exército em marcha. Por isso, regimes, governos e lideranças reagem com desproporção quando atacados não por armas, mas por discursos.

Historicamente, a palavra sempre foi o início da revolução. Antes da Queda da Bastilha, houve os panfletos de Rousseau e as tiradas de Voltaire; antes da Revolução Russa, os textos incendiários de Lênin e a retórica inflamável de Trotsky; antes das ditaduras latino-americanas, os manifestos, as músicas de protesto, os jornais clandestinos. Palavras moldam percepções, criam inimigos imaginários ou reais, e redesenham o campo de batalha ideológico. Quem domina a narrativa não apenas vence discussões — ele conquista mentes, corações e legitimidade.

O poder estabelecido, mesmo quando seguro, sabe que sua imagem pública é o escudo mais frágil. A contestação verbal pode parecer, à primeira vista, inofensiva, mas ela corrói por dentro: mina a confiança dos súditos, enfraquece alianças, estimula dissidências. Por isso, o poder não reage com indiferença diante do verbo insurgente. Ele o escuta como um general escuta um alarme de invasão. E quando a palavra ultrapassa o limiar da crítica e adentra o território da subversão, o poder deixa de ser tolerante. Torna-se implacável.

A repressão à palavra não é sinal de fraqueza, mas de instinto. Os grandes imperadores e líderes nunca temeram o silêncio — temeram os poetas, os filósofos e os oradores. Sócrates foi condenado não por conspirar com armas, mas por ensinar a juventude a pensar. Malcolm X foi silenciado porque sua eloquência fazia tremer os alicerces do sistema. Em nossos dias, vemos democracias reagirem como tiranias diante de discursos que desafiam seus paradigmas — não por vaidade, mas por autopreservação.

Para o líder moderno, essa realidade impõe uma lição crucial: dominar a palavra é mais vital do que dominar a espada. Quem controla a narrativa, molda o terreno onde o poder se constrói. Mas há um alerta mais grave: todo líder precisa saber até onde a tolerância pode ir. Há críticas que fortalecem, mas há discursos que corroem. A linha entre liberdade de expressão e guerra simbólica é tênue — e saber identificá-la é questão de sobrevivência política.

Portanto, não subestime o impacto da palavra sobre o poder. Ela pode parecer frágil como uma pena, mas contém a força de uma avalanche. O poder que não vigia os discursos, cairá pelas bocas que ignorou. E o opositor que pensa que só palavras não matam, um dia se surpreenderá com o que a palavra pode conquistar. O poder tolera muito — mas jamais tolerará ser derrotado no campo da linguagem. Porque quem vence o verbo, já começou a tomar o trono.

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